"Hoje o dia não é um bom dia", pensou. Sabia que algo ia dar errado, mas tinha talento pra fingir que nada percebia. Tinha talento pra cometer a estupidez de ignorar seus instintos. E quanta estupidez ela tinha. Era desesperador ver o quão estúpida podia ser. O problema é que ela acreditava demais nos outros. Acreditava que todo mundo era sincero em relação aos sentimentos. Tão inocente. Oferecia a arma para atirarem nela. E eles atiravam, ah, e como atiravam.
Foi espancada o suficiente por hoje. Já bebera sua cota de ácido sulfúrico.
E foi assim, ferida e assombrada que tirou forças e correu até o jardim. O desespero começava a naufragá-la. Respirou fundo e com toda a força, alma e fôlego que tinha dentro de si, gritou uma oração aos céus:
"Meu Deus, me dê a coragem
de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites,
todos vazios de tua presença.
Me dê a coragem de considerar esse vazio como plenitude.
Faça com que eu seja a tua amante humilde,
entrelaçada a ti em êxtase.
Faça com que eu possa falar com este vazio tremendo
e receber como resposta o amor materno que nutre e embala.
Faça com que eu tenha a coragem de te amar,
sem odiar as tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo.
Faça com que a solidão não me destrua.
Faça com que minha solidão me sirva de companhia.
Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar.
Faça com que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo.
Receba em teus braços o meu pecado de pensar.”
Clarice Lispector
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